sexta-feira, 27 de julho de 2012

Dezanove maneiras (+1) de usar uma pedra - Bibliotecário de Babel

Roda-a nas mãos, como um objecto religioso. Atira-a para longe (à espera de que voe como os pássaros). Coloca-a, delicadamente, no centro geométrico de um jardim de areia. Deixa-a cair num poço. Guarda-a num dos bolsos do casaco (no outro, livros de Virginia Woolf). Esconde-a entre os ovos da capoeira, depois de a arredondares, baralhando as galinhas. Transforma-a no vértice mais distante de uma propriedade disputada por três irmãos quezilentos. Fecha os olhos e experimenta a sua textura, a sua aspereza (Braille mineral). Segue com o dedo cada veio, cada aresta, como se tocasses ao de leve as curvas do corpo amado. Atenta no brilho da luz reflectida, observa o esplendor dos minúsculos cristais. Sente-lhe o peso, a força da gravidade nos músculos do teu braço. Imagina-a lançada pela funda de David, a ferida aberta na cabeça de Golias. Parte a janela mais alta do tribunal onde te condenaram injustamente. Devolve-a ao muro caído no extremo da aldeia, de onde a tiraste numa tarde ominosa, a meio da infância. Procura na sua superfície marcas de sangue, verdadeiro ou imaginário. Supõe que se trata de um planeta e traça-lhe a geografia, com papel vegetal e grafite. Faz dela a pedra do poema de Drummond, a pedra concreta que Drummond viu na sua cabeça ao escrever o poema (mesmo que fosse imaterial, arquetípica) e todas as pedras que todos os leitores do poema viram na sua cabeça, ali no meio do caminho. Afia nela a faca com que cortarás o pão para os teus filhos ou a carne do inimigo, na batalha final. Enterra-a no solo húmido e começa a construir uma casa.
[Texto publicado no n.º 7 da revista A Sul de Nenhum Norte, 2012]
                                                          + UMA IDEIA GIRA - pedras
Stone sculpture by Hirotoshi Itoh, Keiko Gallery.

quinta-feira, 26 de julho de 2012

Presença africana - Alda Lara

E apesar de tudo,
ainda sou a mesma!
Livre e esguia,
filha eterna de quanta rebeldia
me sagrou.
Mãe-África!
Mãe forte da floresta e do deserto,
ainda sou,
a irmã-mulher
de tudo o que em ti vibra
puro e incerto!...
- A dos coqueiros,
de cabeleiras verdes
e corpos arrojados
sobre o azul...
A do dendém
nascendo dos abraços
das palmeiras...
A do sol bom,
mordendo
o chão das Ingombotas...
A das acácias rubras,
salpicando de sangue as avenidas,
longas e floridas...
Sim!, ainda sou a mesma.
- A do amor transbordando
pelos carregadores do cais
suados e confusos,
pelos bairros imundos e dormentes
(Rua 11...Rua 11...)
pelos negros meninos
de barriga inchada
e olhos fundos...
Sem dores nem alegrias,
de tronco nu e musculoso,
a raça escreve a pPresença Africana,
a força destes dias...
E eu revendo ainda
e sempre, nela,
aquela
longa historia inconseqüente...
Terra!
Minha, eternamente...
Terra das acácias,
dos dongos,
dos cólios baloiçando,
mansamente... mansamente!...
Terra!
Ainda sou a mesma!
Ainda sou
a que num canto novo,
pura e livre,
me levanto,
ao aceno do teu Povo!...

Benguela, 1953 ( de Poemas, 1966)

Paisagem - frutos


quarta-feira, 25 de julho de 2012

Aquário - Alice Gomes

Vivia no mar largo
e era feliz
feliz.
Sabia os sítios seguros
onde os maiores e mais duros
não podiam atacar
não o podiam caçar
não o podiam comer.
E continuava a viver.
Quando nadar o cansava
uma alga procurava
e dormia um bocadinho
e a onda que o embalava
era amiga do peixinho.
A onda amiga ondulava
enquanto o acalentava
aquecia
arrefecia
e para longe o levava.
Tão longe
tão vasto o mundo…
o seu mundo!
Tão largo, alto e profundo!...
Que alegria de nadar!
Mas um dia aconteceu
que um fenómeno se deu:
foi pescado
foi levado
para fora do seu mar
para longe do seu lar
transportado
bem fechado
numa prisão de cristal.
E
se não lhe fizeram mal
se o não comeram com sal
está muito descontente
nessa prisão transparente
à vista de toda a gente.

Alice Gomes
Bichinho Poeta: Poesia (também para crianças)

Lisboa, Gráfica Santelmo, 1973