Roda-a nas mãos, como um objecto religioso. Atira-a para longe (à espera de que voe como os pássaros). Coloca-a, delicadamente, no centro geométrico de um jardim de areia. Deixa-a cair num poço. Guarda-a num dos bolsos do casaco (no outro, livros de Virginia Woolf). Esconde-a entre os ovos da capoeira, depois de a arredondares, baralhando as galinhas. Transforma-a no vértice mais distante de uma propriedade disputada por três irmãos quezilentos. Fecha os olhos e experimenta a sua textura, a sua aspereza (Braille mineral). Segue com o dedo cada veio, cada aresta, como se tocasses ao de leve as curvas do corpo amado. Atenta no brilho da luz reflectida, observa o esplendor dos minúsculos cristais. Sente-lhe o peso, a força da gravidade nos músculos do teu braço. Imagina-a lançada pela funda de David, a ferida aberta na cabeça de Golias. Parte a janela mais alta do tribunal onde te condenaram injustamente. Devolve-a ao muro caído no extremo da aldeia, de onde a tiraste numa tarde ominosa, a meio da infância. Procura na sua superfície marcas de sangue, verdadeiro ou imaginário. Supõe que se trata de um planeta e traça-lhe a geografia, com papel vegetal e grafite. Faz dela a pedra do poema de Drummond, a pedra concreta que Drummond viu na sua cabeça ao escrever o poema (mesmo que fosse imaterial, arquetípica) e todas as pedras que todos os leitores do poema viram na sua cabeça, ali no meio do caminho. Afia nela a faca com que cortarás o pão para os teus filhos ou a carne do inimigo, na batalha final. Enterra-a no solo húmido e começa a construir uma casa.
[Texto publicado no n.º 7 da revista A Sul de Nenhum Norte, 2012]
Stone sculpture by Hirotoshi Itoh, Keiko Gallery. |
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